DE LÍNGUA DA CORTE A MATÉRIA DE ESTUDO: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO ENSINO DE FRANCÊS NO BRASIL

Entre corte e estudo

Nos séculos XIX e XX, a presença da língua francesa e dos franceses no Brasil é bem conhecida. Era o tempo das “missões” francesas como recorda com ironia Fernando Novais: “A palavra missão, que era oficial, é muito significativa. A primeira missão francesa que chegou ao Brasil foi a artística, com Dom João VI. A segunda, na Primeira República, tinha como objetivo instruir os oficiais do Exército. A terceira foi a dos docentes que vieram auxiliar na estruturação da USP e da Faculdade de Filosofia. A palavra missão, evidentemente, mostra que éramos vistos como uma terra de índios que deviam ser catequizados”. Além das “missões”, a referência francesa era onipresente, com a importação dos livros, a imitação das modas, a presença dos artistas.
O ensaio de Kate Constantino Oliveira enfatiza uma presença anterior do francês, nos começos do século XIX, quando a língua aparece como um veículo essencial dos conhecimentos científicos e técnicos. Na herança do Iluminismo, ou melhor, da monarquia, o francês era não só a língua das cortes ou da diplomacia, senão também a língua da formação militar, como o mostra o currículo da Academia Real Militar estabelecida no Rio de Janeiro em 1810.
O ensaio indica as várias formas da presença do francês tal como se pode averiguar nas coleções das bibliotecas, com as aquisições de obras publicadas na França, as traduções de livros franceses e os métodos para ensinar a língua, publicados no século XVIII e todavia utilizados nos começos do século XIX. O livro de Luiz Caetano de Lima é particularmente interessante. Publicado em 1700, reeditado em 1733 e 1756, se apresenta como uma Grammatica Franceza, Ou Arte Para Aprender o Francez Por Meyo da Lingua Portugueza. No Prólogo, Luiz Caetano de Lima associa sua experiência da corte francesa com o papel do francês como língua universal de comunicação: “Esta Grammatica Franceza, e Portugueza te ofereço, benevolo Leitor, quase vinte anos de estudo; pois que a pesar de outras ocupações mayores, não larguei nunca de todo este trabalho. Huma grande parte deste tempo assisti na Côrte de Pariz, fazendo reflexão assim na escolha das palavras, como na verdadeira pronûncia das letras; e a outra parte supposto que vivi em Inglaterra, e em Holanda, foi falando quase sempre Francez, escrevendo Cartas, Memorias, e outros papeis na mesma língua”. Nesse caso, o francês se vincula com a sociedade da corte e a correspondência aristocrática.
No mesmo ano de 1756, outro compêndio, Novo E Facillimo Methodo de Grammatica Franceza, e Portugueza […] Ordenado por Hum Genio Amante, dos progressos dos Estudiosos deste Idioma, enfatizava a segunda razão para aprender francês. Não se trata mais da imitação das práticas da corte, senão a difusão dos saberes: “Fico esperando, que te aplliques a tua lição com aquelle cuidado, e deligencia, que se precisa para formar hum homem util ao Rey, e ao Estado por meyo da língoa Franceza, a qual he geralmente reconhecida em toda a Europa por thesouro, em que se achaõ depositadas as riquezas de toda erudição”. O francês é assim considerado como a língua de comunicação privilegiada para a transmissão dos conhecimentos úteis para a sociedade e a humanidade.
O breve ensaio de Kate Constantino Oliveira apresenta com vivacidade um Brasil em francês que merece reconhecimento entre a França Antártica de Jean de Léry, ou a França Equinocial do Capuchinos do Maranhão, e o Brasil parisiense de Machado de Assis.
Roger Chartier é historiador e professor do Collège de France

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