O narrador descentrado e a voz dos silenciados
Muitos/as escritores/as contemporâneos/as têm contribuído para a ampliação do debate sobre o narrador, quando propõem diferentes estratégias para o resgate de vozes que foram silenciadas no decorrer da história como as mulheres, os afrodescendentes, os indígenas, entre tantas outras identidades marginalizadas socialmente. Estamos falando de narrativas nas quais o narrador desloca o ponto de vista da versão hegemônica e passa a explorar ângulos de empoderamento de sujeitos, até então pouco visíveis em textos literários, revisando o passado e apresentando novas possibilidades identitárias para o presente. Esse movimento estético tem proporcionado novas concepções de narrador mais preocupado com o depoimento, o testemunho e o resgate da memória coletiva.
Para Jaime Ginzburg, essa literatura é descentrada, pois apresenta um fazer literário estratégico ao explorar o ponto de vista oposto a “um conjunto de campos dominantes na história social – a política conservadora, a cultura patriarcal, o autoritarismo de Estado, a repressão continuada, a defesa de ideologias voltadas para o machismo, o racismo, a pureza étnica, a heteronormatividade, a desigualdade econômica, entre outros” (2012, p. 201). Esse questionamento está presente em diversas obras analisadas nesta coletânea, sobretudo nas de autoria feminina brasileira.
Por sua vez, Lúcia Zolin tem destacado que o questionamento desse campo dominante, feito pelas narradoras brasileiras, está associado ao empoderamento feminino no qual, o fazer literário é também a revisão do lugar de fala da mulher (2021). Nessa mesma direção, Eduardo Duarte, em seus estudos sobre a literatura afro-brasileira, reforça o quanto o narrador afrodescendente tem a preocupação com o engajamento estético do lugar de fala do escritor negro e da escritora negra, que dão visibilidade à memória dos seus antepassados (2011).
Tais pesquisadores constatam que, nas últimas décadas, o narrador contemporâneo fragmenta muitas convenções estéticas da arte de narrar para montar um quebra-cabeça de novas narrativas com diferentes configurações de vozes textuais. Tais premissas de quebras de paradigmas hegemônicos já tinham sido anunciadas por Linda Hutcheon e Silviano Santiago como próprio de um fazer pós-moderno, ao estudarem narrativas do século XX. Todavia, nas últimas décadas, houve aumento do debate sobre quem está falando que oxigenou o debate sobre estratégias narrativas como constataremos nos estudos apresentados nesta obra.
Nos estudos da narratologia, tradicionalmente, o narrador tem um robusto repertório de conceitos e especificidades que foram sendo ampliadas conforme as sociedades foram se organizando. Walter Benjamin reforça o quanto a modernidade problematizou o papel do narrador que, aos poucos, foi deixando as marcas da oralidade para se concentrar em um jogo de vozes que escamoteiam a verdade dos fatos contados. A grande transformação foi a perda da memória desses narradores modelos, como o viajante e o soldado que, ao voltar para seu povoado, traziam novos repertórios narrativos, que se confundiam com a memória da comunidade, pois eram produzidos de forma artesanal por esses grandes narradores que exploraram recursos orais armazenados e com diferentes “degraus de sua experiência”, reforçando a sua experiência como um símbolo daquele jeito de narrar (Benjamin, 1987, p. 215).
Como previsto por Benjamin, os estudos do narrador passaram a ser mais estruturais e se concentraram nas entranhas do texto para analisar as diferentes possibilidades de narrar. O teórico alemão já nos alertava que a modernidade trazia uma perda lastimável para a literatura, quando deixava de valorizar o intercâmbio de experiências coletivas proporcionado por esses narradores orais para se colocar diante do narrador moderno, que se volta para as engrenagens não como decisões pessoais, mas como marcas e estilos comungados socialmente, reforçando o engessamento do narrador a regras próprias dessa modernização da arte.
Preocupada com a proliferação de diferentes narradores, Norman Friedman apresentou um excepcional estudo técnico sobre essas posições do narrador que vai da “onisciência neutra” à “onisciência intrusa”, ratificando que em um texto narrativo tudo é jogo e a voz que narra é um maestro que comanda a sinfonia de falas e silêncios. Todavia, quando passamos para o narrador personagem, deparamo-nos com um jogo de ponto de vista mais frágil, visto que acreditar em uma história contada por quem detém o poder de contar é uma cilada como bem mostrou Machado de Assis, com seu clássico Dom Casmurro (1899), visto que tudo foi narrado por um homem ciumento, obcecado em provar que foi traído. Dessa experiência, tiramos o ensinamento que, com o narrador personagem, o ponto de vista narrado fica à mercê desse sujeito, tornando-se uma referência de ambiguidades tão bem exploradas por Lygia Fagundes Telles, em As meninas de (1973).
Mas nem tudo está perdido quando um autor opta por um narrador personagem; outras engrenagens do texto literário passam a ter importância na construção dos sentidos narrados e deixam pistas de como devemos desmascarar os narradores ambíguos. Nesse caso, Umberto Eco nos auxilia a valorizar as pistas do texto como um roteiro para entendermos o jogo por trás dessa narrativa.
Por essa mesma linha de raciocínio, Mieke Bal defende que a narrativa é repleta de textos intercalados que nos ajudam a entender a história central, mas nem sempre é identificável, pois essas pistas não são visíveis e demandam um leitor preparado para interpretá-los. Tal sobreposição de espelhos é orquestrada pelo narrador, que ao usá-los tenta camuflar o ponto de vista narrado e mais uma vez fica difícil saber quem está contando aquela história? Portanto, como muitos trabalhos apresentados nessa coletânea, ler um texto narrativo não é tão simples quanto parece, pois devemos estar atentos a essas questões apontadas pelos teóricos.
Ao retomarmos as indagações de Benjamin de como a modernidade poderia fragmentar o papel do narrador da tradição oral, hoje nos perguntamos até que ponto o narrador descentrado vai implodir as tradições da narrativa para deixar aberta uma trilha para os narradores silenciados. Por essa linha de raciocínio, queremos saber como tem se comportado o narrador do século XXI, quando pensamos na produção de sujeitos preocupados com o lugar de fala. Nas obras contemporâneas, observamos um narrador descentrado, isto é, aquele que narra por um ponto de vista não hegemônico. Esse narrador é muito próximo do narrador pós-moderno de Hutcheon, que é visto como um “ex-cêntrico”. Todavia, ele é mais fragmentado e requer um estudo mais aprofundado como mostraremos nesta coletânea com os diferentes estudos apresentados a seguir.
Entre os narradores modernos e contemporâneos, passamos a nos aproximar de cada um dos textos escolhidos a fim de identificar a voz de um/a silenciado/a. Entre os autores brasileiros, teremos narrativas estudadas de Conceição Evaristo, com suas escrevivências de narradoras negras empoderadas; Elisa Lispector, que questiona o envelhecimento de uma solteirona; Nilza Rezende, com sua narradora que se opõe à violência de gênero; Edson Kayapó, que resgata a voz de seus ancestrais indígenas; Maria José Silveira, com o excepcional jogo irônico dos textos hegemônicos, revisando o massacre dos povos originários; Lygia Fagundes Telles, com suas narradoras mergulhadas em crises íntimas, durante uma greve de professores; Itamar Vieira Júnior, explorando o estilo paródico para esfacelar o conservadorismo presente nas relações entre pais e filhos por meio da metáfora do carrasco; Antônio Carlos Viana, que descentra o ponto de vista tradicional ao trazer à tona o enlouquecimento de uma garota abusada sexualmente; Alina Paim, uma narradora engajada com o outro e com a educação da mulher; e, por fim, Ana Maria Machado que dá voz a Capitu por meio de um narrador pós-moderno que desloca a visão hegemônica do patriarca.
Entre os estrangeiros/as, ganham espaço: o narrador de Roberto Bolaño e sua visão investigativa dos infindáveis feminicídios em Ciudad Juárez, no México; a refiguração de Macabéa pelo olhar da escritora caboverdiana Vera Duarte; a voz dos soldados alemães pela experiência traumática do jovem escritor Wolfgang Borchert; as bricolagens de memórias e eras em torno da escravidão propostas pela estadunidense Saidiya Hartman; temos também a retomada das memórias dos/as desaparecidos/as na argentina pelo olhar de terror da escritora argentina Mariana Enríquez; com a ficção autobiográfica, confundindo passado e presente, Annie Ernaux se projeta no seio de sua narrativa; descrevendo violências homofóbicas sofridas em sua infância, Édouard Louis propõe uma literatura autoficcional; retomando o debate da escritora, Madame de Genlis apresenta uma postura tradicional e conservadora para as mulheres escritoras da França do século XVIII; e em uma releitura de sua autobiografia, Jamaica Kincaid explora dados de sua trajetória pessoal para narrar as sequelas da colonização britânica no Caribe.