Teoria, literatura e ensino
Uma rápida consulta a dados do site e-MEC indica que atualmente existem mais de 500 faculdades no país oferecendo graduação em Letras. Na maior parte delas, todo aluno se depara com ao menos uma disciplina pertencente ao grupo da teoria literária. E isso nos permite concluir que, mesmo quando em minoria, a teorização da literatura passa pela vida de dezenas de milhares de pessoas, todo ano, em nosso país.
No entanto, quando um pesquisador da nossa área pensa em traçar um panorama doméstico da teoria literária, é possível que ele se volte para outras direções que não a dessa dimensão material da docência É possível que leia publicações brasileiras notórias nos últimos 60 anos. Que recorra às páginas de um Antonio Candido, de um Luiz Costa Lima, de um Silviano Santiago. Ou (se mais judicioso) que folheie cadernos de resumos de eventos como o da Abralic, e trace um mapa diferencial daquilo que, com a disciplina, se recobre em centenas de práticas de pesquisa.
Mas, ao se voltar para essas direções, aquele que busca o retrato da teoria literária no Brasil reconhece apenas a face dela que se volta para dentro. Aquela que se faz muitas vezes solitariamente. E que, quando circula, vai de tela em tela – ou de mesa em mesa. Que se cochicha e às vezes mal se ouve nas comunicações e nos simpósios.
Em contraste, a sala de aula oferece uma face da disciplina que se volta mais para fora. Aí, nos parece, reside a importância de tratar deste tema – do “ensino de teoria literária”. Pois, com ele, pode-se tentar mensurar um entrelaçamento coletivo e em massa entre teoria e prática. E que é o modo como, quer queira, quer não, ela mais existe e se justifica socialmente. Para nós, trata-se de chamar a atenção para esse grau da existência do teórico. De lembrar que ele tem lugar de março a dezembro todo ano, centenas de vezes – num corpo a corpo que responde pela parte que há de mais concreto e público no pensamento.
Tal colocação de debate envolve o discernimento de um espectro de posições que um professor de teoria pode vir a ocupar. A teoria literária ocupa uma posição das mais singulares entre todas as disciplinas teóricas dadas na Universidade. Alguém que ingressa no curso de filosofia terá, em sua grande maioria, disciplinas teóricas. Pessoas que ingressam em sociologia terão muitas disciplinas teóricas. Mas quem ingressa em Letras terá no máximo três ou quatro teorias literárias, duas literaturas comparadas. Cinco disciplinas num universo de quarenta?
Talvez por isso, a teoria não goza de muito prestígio entre os alunos de Letras. A maior parte deles, futuros professores de idioma – e, com razão, muito mais interessados em adquirir competência nisso –, se inscreve na disciplina de Teoria Literária por obrigação. Outros, aplicados, se esforçam por decifrar o que é dito nela durante as aulas. Mas, acostumados com disciplinas de caráter mais técnico, que distribuem definições seguras sobre fonemas, conjunções e pronúncias, não encontram nada que lhes pareça palpável em tal ambiente. É recorrente o tema da falta de matéria. De uma matéria que se inscreve linearmente do quadro. De uma matéria substanciosa que se possa tocar. De uma matéria de Teoria da Literatura, de fato.
A teoria se insula. De um lado, exige do professor lidar com um público que impõe o limite da desatenção e do desinteresse. De outro, exige do aluno a difícil compreensão de uma disciplina que coloca em causa conceitos e noções do senso comum, que constrói em ato teorias e especulações, ou que suspende certezas tidas como evidentes. Mas que nem sempre parece ter força para fazer valer esses atos, perdidos num mar de disciplinas que se orientam em horizontes mais estáveis e fixos.
Essa dinâmica, no entanto, não se oferece apenas como um obstáculo. Se na faculdade de filosofia um aluno entra sabendo que fará disciplinas teóricas, e desejando-as, isso implica também que, para o professor de filosofia, o interesse e a importância da teoria estão dados. Pode haver necessidade de envolver os alunos para sua aula. Mas geralmente não haverá necessidade de engajar os alunos na filosofia. O professor não precisa, não de forma tão constitutiva, se defrontar com os sinais indecifráveis do interesse calado e do desinteresse que não se delata. Ele tampouco é forçado, com isso, a também sempre duvidar do interesse do que está propondo. A deixar a imprevisibilidade da reação dos alunos deslocá-lo do lugar seguro em que ele poderia se ancorar e desde o qual dialoga com seus pares em aulas de pós-graduação, simpósios e eventos acadêmicos.
Aí, quando é posta em desconfiança, a teoria pode crescer. Os textos, garantidos no papel e por uma história instituída, passam a requerer de novo justificativas para a sua existência: sua vida – ou então o tédio. E isso não apenas do ponto de vista fechado da história da disciplina. Eles passam a requerer uma justificativa também diante da atualidade dos alunos. Do fato de terem atravessado a cidade, de se entreterem com memes, áudios e vídeos de 5 segundos. E de, bem ou mal, estarem ali ao vivo.
Nesse sentido, este livro recebeu contribuições que buscaram dialogar com diversas frentes do problema. O capítulo de De Martini, “A Teoria da Literatura, o Currículo e Outros Monstros”, explora a questão das relações entre ensino e teoria literária com olhar para o problema institucional do “currículo”. Por meio da discussão de bibliografia atualizada acerca do letramento literário (Cosson, Cereja, Lajolo e outros), revisita a história da curricularização da teoria literária no Brasil em suas consequências atuais. Com essa base, discute propostas, embasadas por sua vivência junto a dois Núcleos Docentes Estruturantes – colegiado responsável pela elaboração do Projeto Pedagógico de um Curso –, com o objetivo de repensar currículos mais afinados e orgânicos para o ensino de literatura na universidade. Elegendo o “ensino de literatura” como um dos cernes das licenciaturas em Letras – o que poderia ser óbvio, mas raramente é –, De Martini aposta na transformação do excessivo destaque aos modelos tradicionais de periodicização das literaturas nacionais e ressalta a importância da incorporação da teoria e da elaboração de um repertório como pontos de partida para um ensino mais bem sucedido, capaz de angariar os afetos dos estudantes que, não raro, olham para as disciplinas de pendor excessivamente “bacharelesco” do currículo literário com desinteresse, desconfiança e distanciamento.
Em “Teoria, experiência e leitura literárias”, Felipe Mansur parte do diagnóstico da crise da teoria, consolidado em autores influentes como Antoine Compagnon e Terry Eagleton, para pensar um modo alternativo de ativar o pensamento crítico e teórico sobre o (e a partir do) texto literário. Centrado na leitura de Pierre Menard, autor de Quixote, ou mais especificamente na passagem entre a obra visível desse autor imaginário e sua contraparte invisível (e impossível), os alunos se veem convocados a um exercício de análise e pensamento que – em vista da própria inanidade dessa obra irrealizável – não se deixa reduzir à razão instrumental reinante no senso comum de nossa época.
Por outro lado, Lucas Pugliesi parte também do diagnóstico de certa crise, mas focando nesse caso na legitimidade dos objetos: por que ensinamos literatura? Por que textos da dita tradição literária e não outra sorte de objetos, descentralizados em relação aos grandes centros de poder do ocidente moderno ou estrangeiros às habituais formas de consagração? Dialogando com os aportes recentes de André Cechinel e Fábio Durão, Pugliesi propõe que o trabalho com textos interessa justamente pela não familiaridade, pela estranheza dessa mídia pouco estimulante, em meio ao reinado inconteste das telas e da excitação intensa e constante. Por outro lado, se distanciando dos referidos teóricos, analisa duas formas de avaliação que pratica: os diários de leitura (anotações requeridas dos alunos, um pouco à imagem dos célebres hypomnemata analisados por Foucault) e as antologias (pedindo que do rol de leituras cobertas nos cursos, os alunos selecionem alguns textos/trechos). Ambas tarefas operam como tentativas de estimular a lida com a mídia pouco excitante do texto, ora como um convite ao desenvolvimento, pelo aluno, de uma disciplina de leitura (diários), ora dando margem à sua criatividade e oferecendo o espaço onde alojar seu desejo (antologias).
Pensando mais globalmente a própria noção de uma “disciplina” a partir de suas consequências epistemológicas, Bruno Domingues Machado, com “Uma teoria da literatura situada”, rastreia os efeitos alienantes de um modo de ser do proceder universitário em delimitar um campo singular e autônomo. Se hoje, mais vezes do que não, muito do que se discute no âmbito de ensino literário propõe um “retorno ao texto”, Machado oferece um diagnóstico preciso sobre os limites e aporias dessa abordagem, situando-a em um movimento que acaba desvinculado as práticas docentes e de pesquisa do terra-a-terra da invenção cotidiana. Esse abismo não seria produtivo eticamente – como a criação de uma diferença para a vida “nua” no horizonte da mercadoria -, mas apenas reforçaria um aparente desligamento entre o que se pode fazer nas aulas de literatura e aquilo que os estudantes (e professores) fazem o tempo todo em suas vidas. Pautando-se, sobretudo, nas análises epistemológicas de Coccia, Foucault e Certeau, o autor propõe um percurso curricular, aberto e inventivo, que favoreça a vinculação do pensamento, no espaço da aula de literatura, com as práticas mais concretas, de modo a evidenciar como esse interstício pode contribuir para a ampliação das táticas de invenção do cotidiano.
O capítulo de Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa, “Humanos por força de lei ou pelos caminhos de amoa-hi: Literatura, currículo e Teoria na escola brasileira”, traz reflexões sobre a atuação mais ou menos implícita da teoria da literatura no cenário do Ensino Básico e Médio brasileiro. Ao expor textualmente o modo como uma certa concepção teórica de literatura norteia as diretrizes curriculares do ensino obrigatório no país, Ribeiro Barbosa questiona a pertinência de tal concepção. E, defende para o ensino a prática constante de leituras coletivas, na qual as especificidades que constituem o texto literário se modulariam pelas especificidades que constituem os grupos de alunos (a realidade do bairro onde moram, as atividades culturais que fazem parte de seu dia a dia). A generalidade dos tópicos curriculares daria lugar assim a indagações em torno desse encontro. E o absoluto literário, nas palavras do autor, encontraria na escola as formas da democracia.
O capítulo de Laryssa Naumann, “Lê melhor quem escreve”, faz um relato de uma sequência de aulas dadas pela autora sobre o livro Frankenstein, de Shelley, em dois contextos distintos: em um curso de graduação de Literatura Comparada e em um colégio da Educação Básica. Graças ao caráter de relato, Naumann oferece ao leitor a chance de acompanhar de forma concreta alguns trânsitos possíveis entre duas esferas da educação aparentemente muito distantes. Ao longo do texto, ela sustenta que essa conexão, tão importante, se torna muito factível quando o professor decide dar primazia ao texto literário, e o oferece aos alunos não apenas através da leitura, mas de diálogos ativos – com a aula exercendo também uma espécie de oficina de escrita literária.
Em “Explicação ou contraexemplo? Algumas ideias sobre ensino de (teoria da) literatura a partir de O mestre ignorante”, Maurício Chamarelli Gutierrez toma emprestado duas ideias de filósofos franceses a fim de realizar uma (autor) reflexão docente. Na primeira, introduzida pelo texto de Rancière referido no título do capítulo, coloca-se em xeque a posição do mestre, em nome de uma emancipação radical do aprendiz. Essa emancipação seria possível desde uma perspectiva para a qual a reação de um intelecto diante de um produto humano traria sempre uma resposta justamente correlacionável com o produto. Não há como o mestre explicar ao aluno a resposta; cabe-lhe apenas mediar um encontro favorável à emancipação do outro. Na segunda ideia, Gutierrez relaciona a emancipação do aprendiz com a destituição derridiana da presença de um leitor prévio ao texto: este produziria a cada leitura um leitor, que, por sua vez, traria sempre uma distinção não desprezível ao texto, diferindo-o e contra-assinando-o. Sem mestre, e sem leitor prévio, a atividade de ensino se tornaria a tentativa de despertar, do lado do professor e do lado do aluno, contra-assinaturas dos textos que circulam pelas aulas.
Já Danielle Magalhães revisita algumas cenas de origem em Benjamin, Chklovski, Cixous, Trocoli e Adriane Garcia, tentando pensar um outro paradigma de transmissão e herança para a teoria da literatura. Ao invés de calcar a teoria em uma compreensão do poético como dizer primeiro – ação originária com que Adão dá nome às coisas – pensá-lo no paradigma relacional da conversa de Eva com a serpente. Esse paradigma evânico disponibilizaria para nós uma transmissão não patriarcal e não hierárquica no contexto pós-autônomo do que Josefina Ludmer chamou “o que vem depois” (contraposto ao que vem primeiro, à primeira nomeação adâmica).
Em “Ensinar Literatura Portuguesa hoje desde o Brasil”, Marcella Assis de Moraes parte do importante encontro entre três realidades: 1) a obra Minha pátria é a língua pretuguesa, do escritor angolano Kalaf Epalanga; 2) a condição multi-cultural, transnacional, diaspórica, cada vez mais intensa no mundo de hoje; 3) a mudança do perfil dos alunos universitários no Brasil, com o ingresso de camadas sociais antes excluídas desse espaço, como a comunidade negra. Diante desse entroncamento, o artigo busca colocar a seguinte questão: qual a pertinência de uma nação pós-colonial como a nossa continuar se atendo aos limites geopolíticos de nação no ensino das literaturas nacionais – sobretudo daquela oriunda do antigo país que lhe colonizou?
Joaci Furtado, com “A paixão teórica: aula, teoria, literatura e outras antiguidades na era da obsolescência programada”, adensa o diagnóstico de uma grave crise institucional no âmbito do ensino, em especial, pelo fracasso do modelo curricular e do gênero “aula”. O autor também prevê medidas para reinventar o espaço da aula como átimo da invenção, curiosidade e pesquisa, mas não em um nível intermediário das práticas cotidianas e sim, em âmbito institucional e vertical. Em profunda incorporação das reflexões de Pedro Demo em Outra universidade, Furtado, sem concessões, evidencia a vacuidade das práticas docentes em nível universitário, produtoras de um alijamento do estímulo à invenção crítica, à paixão teórica e ao gozo da pesquisa entre os estudantes. Mapeando de maneira caleidoscópica o niilismo de um “capitalismo acadêmico”, Furtado propõe maneiras radicais de transformar o estado da questão. Assim, a diminuição drástica da carga horária surge como forma de incentivar a leitura e, sobretudo, a escrita. O modelo de pouca aula, muita pesquisa, elaboração e discussão, vigente na pós-graduação, deveria ser radicalizado como um espaço experimental extensível à graduação e à escola básica, de forma a criar um vínculo inequívoco entre ensino e pesquisa, na esteira do que ocorre em projetos como o da Escola da Ponte. De maneira sardônica e provocadora, Furtado parece, retoricamente, abalar o chão de certezas sobre os quais a própria proposta deste livro se lastreou.