Antropologias: 15 anos de pesquisas do PPGA-UFS

É com grande satisfação que apresentamos o livro Antropologias: 15 anos de pesquisas do PPGA-UFS, edição comemorativa que agrega pesquisas produzidas pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe em seus significativos quinze anos de existência. Professores, alunos e egressos foram convidados a submeter capítulos em chamada pública, e pode-se dizer que o mosaico aqui articulado é bastante representativo da diversidade de temas analisados no programa durante esses anos. Ao mesmo tempo, percebemos fios analíticos que interligam os manuscritos. Foi a partir dessas relações que os separamos em três seções: I – Estado e políticas públicas; II – Pandemia e questões teórico-metodológicas; III – Relação de poder e minorias. No entanto, o leitor atento notará que muitos desses capítulos poderiam habitar duas ou mesmo três seções, o que evidencia a consistência analítica e o diálogo dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do programa. Ao longo desses quinze anos, tem sido comum encontrar trabalhos que transitam entre as três linhas de pesquisa do PPGA, a saber: Relações de Poder, Política e Sociedade Contemporânea; Memórias, Saberes, Práticas Performativas e Patrimônio; e Cultura, Linguagens, Cognição e Simbolismos.
O Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe, inicialmente conhecido desde a sua criação como Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia (NPPA), foi reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no início de 2009 e teve sua primeira turma em agosto do mesmo ano. Tem focado o seu interesse nas expressões culturais do Nordeste, mais especificamente do estado de Sergipe. Além do ensino, a pesquisa e a divulgação do material decorrente do trabalho do corpo docente e discente sempre foram duas atividades correlatas para dar uma melhor projeção ao Programa como um todo. A conjuntura política, econômica e social do Brasil é determinante nesse processo de produção de conhecimento. Nos últimos dez anos, houve uma reduzida assistência financeira por parte dos órgãos de fomento, o que dificultou parte dos nossos planos. A partir de 2020, com a crise sanitária decorrente da Covid-19, que abalou o mundo inteiro, tivemos mais dificuldades ligadas à produção de trabalhos científicos, como a invenção de novas metodologias e técnicas de pesquisas diante do quadro de isolamento social.
No caso da presente coletânea, boa parte dos trabalhos sofreu o impacto da pandemia; também, alguns deles, devido à conjuntura, versaram sobre ela, com metodologias adotadas pelo ensino e a pesquisa no sistema remoto ou híbrido. Cabe frisar aqui que a postura neoliberal dos governos Temer e Bolsonaro, junto com o negacionismo deste último, afetaram o desempenho da ciência em geral. Ao se opor a ela como se sua mera existência lhe fosse uma ofensa pessoal, o governo anterior reduziu de modo vertiginoso e sem precedentes os recursos alocados para a ciência e a educação. Para as ciências humanas e sociais, o impacto foi ainda maior em razão do argumento de sua “improdutividade” em face das ciências exatas e naturais, consideradas rentáveis e produtivas. Como efeito imediato para o Programa, a ausência de bolsas de mestrado que assegurassem condições mínimas de desenvolvimento da pesquisa de discentes reduziu drasticamente o número de inscrições para o programa e influenciou a continuidade dos estudos dos bolsistas diante de atrasos no pagamento e suspensão de recebimentos, adversidades que, por sua vez, levaram a atrasos na defesa das dissertações.
A seção Estado e políticas públicas abre a coletânea, com o capítulo de Leonardo Esteves, intitulado Quando o campo é o Estado: rotas e desvios de uma etnografia sobre políticas culturais, que “procura chamar a atenção para rotas e desvios de uma etnografia em torno daquilo que chamamos genericamente de ‘Estado’”. O autor adverte sobre as diferenças entre maracatus rural e nação, e insere as manifestações culturais num contexto de instabilidade política entre 2014 e 2019, tanto em nível municipal, estadual quanto federal. Um processo rigorosamente burocrático, o que levou Esteves a adotar uma estratégia metodológica para o seu trabalho, se dividindo entre duas posturas: a da movimentação ora mais próximo do poder público, ora, dos representantes das culturas populares. Sem perder de vista que há imprevisíveis, devido à natureza do empreendimento antropológico, o autor aborda o Estado a partir de um olhar propriamente etnográfico, “de perto e de dentro”, apontando as rotas e os desvios de uma etnografia sobre políticas públicas.
Apresentamos em seguida mais um trabalho neste ciclo consagrado ao Estado e as políticas públicas. A ritualização da luta pela moradia: um olhar etnográfico sobre as místicas dos Movimentos Sem-Teto sergipanos é da autoria de Marcos Andrade Rocha, mestre em antropologia (PPGA) e doutorando em Sociologia (PPGS) na UFS. O manuscrito é resultado da pesquisa realizada junto aos movimentos sociais de ocupação na região metropolitana de Aracaju; analisa-se a ritualização da luta pela moradia a partir de diferentes levas de ocupação; ato fundamental na coesão entre os ditos movimentos, que sustenta uma espécie de mística com sentido próprio, a partir de símbolos como bandeiras, cores, letras do alfabeto, valores, brados e cânticos, palavras como “resistência”, entre outros, em meio a tensões e conflitos.
Para encerrar esta seção, o artigo de Diogo Francisco Cruz Monteiro, intitulado Terra dos Índios Xocó: antropologia, direito e a comprovação da posse do território de um grupo indígena de Sergipe, vai dar outra dimensão ao problema do reconhecimento de povos originários do Brasil, especificamente em Sergipe. O objetivo principal é demonstrar, através da análise do livro escrito pela antropóloga Beatriz Góis Dantas e pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari intitulado Terra dos Índios Xocó (1980), a importância de ser um suporte de conhecimento antropológico para o Direito, no que tange ao reconhecimento de posse da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, Porto da Folha (SE). Um estudo de antropologia engajada e que deu margem para realização de pesquisa documental e entrevista com a própria autora. O autor afirma: “A militância de Beatriz Dantas em prol dos Xokó criou as condições de possibilidade para a concepção daquela obra, que prezou pelo rigor dos preceitos da ciência antropológica na organização dos dados que serviram como evidência da posse do território pelos Xokó”. Uma bibliografia sobre perícias, sobre relações interétnicas e sobre fontes arquivísticas reforça o arcabouço teórico do trabalho.
A seção II, Pandemia e questões teórico-metodológicas, inicia-se com o capítulo intitulado O Papel da Defensoria Pública da União de Sergipe na pandemia de Covid-19. Os autores, Mariana Cavalcante Ouverney e Frank Marcon, “partem da perspectiva da Antropologia das Instituições para analisar o papel da Defensoria Pública da União em Sergipe durante a pandemia de Covid-19, entendendo a DPU como parte das instituições do sistema de justiça no Brasil, cuja missão é proporcionar o acesso à justiça dos cidadãos hipossuficientes e vulnerabilizados”. Vale mencionar o contexto de redação deste trabalho, resultante da pandemia de Covid-19, tragédia sanitária que afetou o mundo desde os planos político, econômico e social, como importante para o seu desenvolvimento, com adaptações e reinvenções. A análise da legislação, a revisão bibliográfica, as entrevistas semiestruturadas e gravadas e a análise do sistema de informações anônimas são estratégias metodológicas, dentro de um contexto particular de demandas, processos de assistência jurídica de forma majoritariamente remota, devido ao isolamento social. Em conclusão, os autores afirmam que “é importante destacar que o crescimento e a visibilidade da Defensoria Pública da União foram conquistados com base no discurso de um acesso à justiça de qualidade aos mais necessitados e vulneráveis, mas também através do prestígio e do reconhecimento construído nas relações humanizadas com seus(suas) assistidos(as)”.
Ainda nesta linha das relações sociais no âmbito da pandemia, destaca-se o texto Pandemia no Brasil: Impactos das crises nas Políticas Públicas direcionadas às Juventudes, de Lúcia Verônica Muniz de Paulo e Frank Marcon. Trata-se de contextualizar a pandemia no Brasil e as suas consequências nas políticas públicas para a saúde mental da juventude, num contexto de sucateamento das políticas públicas de cuidados acentuadas pela crise social e política. Foi em pleno governo de direita e neoliberal no país, caraterizado pelo seu negacionismo, sem política do cuidado voltada à saúde; em suma, tratava-se de uma necropolítica, nos termos de Achille Mbembe (2018). Questionário, perguntas objetivas sobre a situação social dos jovens e a sua faixa etária são algumas das estratégias de pesquisa para corroborar a vulnerabilização, a individualização e a invisibilização que são conceitos explorados nesse contexto de sofrimento e emoções.
Um pouco voltado para uma crítica de cânones teóricos ocidentais dos estudos sobre interdisciplinaridade vem o artigo de Luciana de Castro Nunes Novaes, intitulado Por uma crítica textual intermundo: vínculos entre arqueologia e etnografia. É uma crítica textual do fazer etnográfico que descansa sobre a captura da “comunicação intermundo a partir das propriedades físicas dos materiais em contexto afrodiaspórico”, o que questiona a “autoridade da escrita a partir de uma práxis científica impactada pela iniciação religiosa no culto aos Orixás”. Enfoques diversos se envolvem nessa crítica histórica, arqueológica e antropológica ligada à biografia da autora: a materialidade afrorreligiosa é detentora de consciência sagrada.
O capítulo intitulado Olhando, ouvindo e escrevendo: uma análise sobre a aprendizagem e o fazer antropológico na pandemia de Covid-19, de autoria de Gladston Oliveira dos Passos (UFMG), Mariana Cavalcante Ouverney (UFS) e Josiane Alves Barreto Novais (UFS), analisa e rememora o cotidiano dos autores enquanto alunos de mestrado do PPGA, durante a experiência singular de iniciar a pós-graduação em 2021, em plena pandemia. Atualmente egressos do programa, os autores compartilham suas reflexões em um texto que combina memória e análise do impacto da pandemia na pesquisa antropológica, abordando questões teórico-metodológicas sobre etnografia digital. O capítulo explora o impacto da pandemia no trabalho de campo dos três pesquisadores, estruturando-se em quatro momentos principais: as reflexões teórico-metodológicas de cada autor diante de seu objeto e desafios impostos pela pandemia, e um momento de reflexão conjunta, em que etnografam a experiência da turma 2021. O ensino remoto, o cotidiano do medo do invisível e a morte de parentes e pessoas próximas impõem-se como cenário de um relato coletivo que serve de análise e também de memória para o próprio PPGA, dos desafios políticos e sanitários vividos pelo programa, que afetaram tanto o corpo docente quanto discente.
Matheus Felipe Bispo dos Santos abre a seção III, Relação de poder e minorias, com o trabalho Olhares na encruzilhada sexual: discutindo sexo, gênero e sexualidade no Candomblé a partir de perspectivas cruzadas. O autor nos explica que, em sua gênese, o candomblé absorve as categorias de transexualidade e sexuais, e passa a enquadrá-las dentro de sua estrutura. Deste modo, “as discussões propostas fazem um contorno sobre a questão da transexualidade e do gênero no candomblé contemporâneo e os desafios decorrentes disso”, a partir de diferentes leituras e enfoques. Autores específicos da questão de gênero: Foucault, Beauvoir, Butler, Strathern, Oyěwùmí, entre outros foram suficientemente revisitados com o objetivo de abrir novos espaços na compreensão da questão do gênero, do sexo e da sexualidade na religião brasileira de presença africana.
Em Pesquisando com os Xokó, recentemente: memória, ritual, gênero e ambiente, capítulo escrito por Ana Carolina da Silva, Ianara Apolônio e Ugo Maia, nos deparamos com as experiências etnográficas das duas primeiras autoras que nos permitem ter diferentes encontros com o povo Xokó, seja por meio da perspectiva nativa (Ianara) sobre seu próprio coletivo e território e sobre “o quê” ou “não” se deve dizer em um texto escrito, seja quanto ao foco na centralidade das mulheres indígenas nos rituais e no resguardo da identidade indígena, talvez apenas possível por ser ela (Ana), uma etnógrafa. Ao remarcarem que a recuperação do bioma caatinga devastado e a produção de biocosmodiversidade é um “efeito” tangível do modo de existência Xokó, sem a necessidade de afirmar que eles são guardiões naturais da natureza, apontam que sua forma de relação social com o entorno pode muito bem servir como alternativa a modos de vida que produzem desertos ecológicos como forma de governo sobre o espaço, com sérias implicações sobre a própria continuidade da humanidade. Ademais, e como um grande exercício de generosidade intelectual, as(os) autoras(es) reconhecem a incompletude do ser, em vez da defesa da vulgata moderna acerca da excepcionalidade do humano sobre todos os demais entes, bem como a produtividade antropológica da incerteza e indiscernibilidade que nos permite evitar o fechamento e a sobrecodificação da diferença quando, diante dela, as certezas sociológicas operariam como ferramenta de neutralização da alteridade. Assim, ao reconhecerem que desconhecem os mistérios do ritual indígena, ele mesmo está em devir, assim como as relações com os entes, com a(o) antropóloga(o) e esta(e) com seu ofício. Na parte final, há uma fina e cuidadosa análise dos dados etnográficos apresentados no início do texto através de algumas chaves analíticas levistraussianas que nos levam a considerar a necessidade de uma abertura antropológica à emergência de questões ainda não postas pelo pensamento moderno e a serem respondidas de modos não modernos por coletivos humanos fabricados como ausentes.
Em seu texto intitulado Sevilha se fez cigana: etnografia de uma via crucis em Sevilha/Espanha, Ulisses Rafael afirma que pretendia estudar as festas populares e as procissões religiosas da Semana Santa na cidade de Sevilha (Espanha), particularmente a noite mais importante da quaresma (Madrugá), mas com a emergência da pandemia de Covid-19, o foco da pesquisa teve que ser modificado para a Via Crucis da Irmandade dos Ciganos, grupo étnico historicamente marginalizado no cotidiano religioso e cultural. O autor aponta que o Barroco vai além de sua influência na paisagem arquitetônica da cidade, pois ele mesmo é um conceito estético e filosófico, uma chave analítica para analisar traços e dinâmicas culturais e sociais, dado que a pandemia e a interrupção de eventos religiosos produziram melancolia e resignação nos fiéis e no próprio etnógrafo. O autor remarca assim a mobilidade analítica e metodológica da antropologia em se adaptar a situações inesperadas e em tomar outras dimensões semânticas do Barroco, através de filósofos como W. Benjamin e G. Deleuze, para lograr uma análise sofisticada e pertinente sobre o próprio modo de ser, pensar e sentir do sevilhano em meio à forte presença cigana que opera como uma dobra conectora e, ao mesmo tempo, divisora entre luto, melancolia, martírio e alegria, canto, ruído e espontaneidade.
Em Etnografia de Tela: mapeamento preliminar dos casos de transfeminicídios no Brasil sob uma perspectiva transfeminista interseccional, Samuel Rabelo e Patrícia Rosalba Costa abordam casos de transfeminicídio no Brasil, a partir de uma etnografia de tela, seguindo a linha de alguns capítulos da seção de textos anterior, focados em questões metodológicas, apontando assim para a importância dos estudos da antropologia digital para o mundo contemporâneo. Os autores mapeiam casos de transfeminicídio, analisando os discursos difundidos em redes sociais e matérias de jornais online, enfatizando a construção de discursos que geralmente reforçam estereótipos, desumanizam e culpabilizam as vítimas. O trabalho é analiticamente orientado a partir da perspectiva transfeminista interseccional, que atravessa gênero, raça, classe e sexualidade, que incidem nos casos de violências contra travestis e mulheres transexuais.
A coletânea aqui apresentada pode ser compreendida como um arquivo heterodoxo do PPGA-UFS, ou mesmo como um memorial, que, apesar de não abarcar tudo, nem todos os que fizeram parte dessa história, serve como um bom panorama da antropologia praticada em Sergipe. A proposta de organizar uma coletânea-memória do programa figura como uma costura entre vários olhares e pesquisas que se debruçam sobretudo por Sergipe e regiões vizinhas, evidenciando assim o impacto que o PPGA, único programa de mestrado em antropologia do estado, tem sobre Sergipe e estados vizinhos. E que nos próximos quinze anos vejamos as sementes dessa nova geração agora disseminadas, germinarem em articulações regionais, nacionais e transnacionais.

Marina Cavalcante Vieira
Hippolyte Brice Sogbossi
Gabriel Rodrigues Lopes

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